sexta-feira, julho 04, 2008

"História a duas vozes": uma discussão necessária. I

Rui Bebiano, historiador com obra publicada, professor, com actividade cívica pública e inequívoca, publicou, em dois blogues de referência em que colabora, empenhadamente, um muito interessante texto do qual transcrevo o essencial, mas que, de modo algum dispensa a sua leitura integral:
"Barnavi: «A História tem sido notificada para se colocar ao serviço da memória. Esta apropriação da História parece-me uma das características mais graves da nossa época.»
Nora: «O tempo no qual os positivistas conservavam à distância a história contemporânea parece hoje completamente ultrapassado. Fazer História é fazer história contemporânea.»
Barnavi: «Um dos males que corrói a nossa época é a confusão de papéis entre o historiador e o ideólogo.»
Nora: «A memória incorpora doravante uma reivindicação particularista, subjectiva e peremptória, quando não terrorista.»
Um debate que é para (e que deve) continuar."
Rui Bebiano, in a Terceira Noite e Caminhos da Memória.

Pierre Nora, que eu conheço, é um historiador com créditos firmados na historiografia francesa da Nouvelle Histoire, herdeiros da segunda/terceira fase da Ecóle des Annalles, a de Fernand Braudel.

Barnavi,que eu desconheço de todo, mas como refere Rui Bebiano é um historiador Israelita a trabalhar, também, em Bruxelles.

Sugere Rui Bebiano, que se possa e deva debater estes dois pontos de vista. É, pois, o risco que vou correr e, porventura, incorrer numa enorme irresponsabilidade.

O objecto da história, o papel do historiador (o escritor de história...) é um problema velhíssimo. Heródoto, Tucídides, Michelet, Hegel e todos os contemporâneos, de que se destacaram, sem sombra de dúvidas Marc Bloch e Georges Duby. No entanto, em meu modesto entendimento, o NOSSO José Mattoso não fica nada mal nesta galeria, A epistemologia da história, a sua problemática imanente, é de longa data e continua a martirizar os historiadores.

Hegel tem uma expressão deveras feliz para colorir esta problemática: "Le probléme de l''histoire est l´histoire du probléme"

Três livros (há mais, muitos mais..., que abordam, penso eu, de modo impressivo e rigoroso esta problemática:
1/ Ensaios de Ego-História, sete autores e coordenação de Pierre Nora, Editions Gallimard, 1987 e Edições 70, 1989;

2/Cursos da Arrábida: A História: Entre Memória e Invenção, coordenação de Pedro Cardim, Publicações Europa-América, 1998;

3/Introduction à l'Histoire immédiate, Benoît Verhageen, Editions Duculot, 1974 (não conheço tradução para o português).

Pierre Nora na apresentação do seu projecto editorial sobre a ego-história diz coisas deveras interessantes: (...) "historiadores que procuram ser historiadores deles próprios. São documentos a tratar, como tal, por futuros historiadores, mas documentos em segundo grau; não aqueles que os historiadores utilizam em geral, mas aqueles que a certa altura aceitaram fazer sobre eles próprios." E diz mais, e aquilo que me parece curial trazer para este debate sugerido por RB: "Toda uma tradição científica levou os historiadores, desde há um século, a apagarem-se perante o seu trabalho, a dissimularem a personalidade por detrás do conhecimento, a barricarem-se por detrás das suas fichas, a evadirem-se para uma outra época, a não se exprimirem senão por intermédio de outros, permitindo-se fazer, na dedicatória da tese, no prefácio do ensaio, uma confidência furtiva."

Pierre Nora desafiou vários historiadores, com créditos firmados, reconhecidos pelos seus pares e pela comunidade científica como GRANDES e competentíssimos historiadores, para escreverem a sua, deles, própria história, mas que não fosse "nem autobiografia falsamente literária, nem confissões inutilmente íntimas, nem profissão de fé abstracta, nem tentativas de psicanálise selvagem."

O que está nesta obra é um tesouro imenso (Duby, Le Goff, Chaunu, Rémond, Perrot, Girardet, Agulhon e, claro está, mas ficando de fora como escritor, Pierre Nora), que nos permite entrar na discussão sugerida por RB, mediatizada pelo diálogo entre Nora e Barnavi.É a hora (gulosando Pessoa), para dirimir o quid dos que se dedicam à história: "De explicitar, como historiador, o elo entre a história que se fez e a história que vos fez."

Duby, um dos meus mestres, a par de Bloch e Paul Veyne (já me connfessei sobre os portugueses...)aborda, como incipit, no seu "o prazer do historiador", uma tese de Claude Simon: (...) "A narrativa que ele me fez foi, sem dúvida, falsa, artificial, como está condenada a sê-lo toda a narrativa de acontecimentos feita logo a seguir, a par do facto de, ao serem contados, os acontecimentos, os pormenores, os menús feitos, tomarem um aspecto solene, importante que nada lhes confere no momento(...)"

Chegados aqui importa dizer que, todo, o historiador que se dedique, escreva, investigue o que quer que seja, que se preocupe com as civilizações pré-classicas, com a Roma clássica, com a história do cristianismo, com a história dos comunismos ou, mais perto de nós, com a situação no Iraque, no Afeganistão ou, de mor actualidade, a situação dos reféns dos narco-guerrilheiros das FARC colombianas persegue, sempre, mas sempre um Graal: a verdade!

Mas, Duby, quer baralhar-nos: "Todo o historiador se extenua para conseguir a verdade; essa presa escapa-lhe sempre. Penso que estou quase a agarrá-la quando tento estabelecer o que foi a batalha de Bouvines ou a de Austerlitz. Mas se procurar descobrir como os homens amam ou crêem amar no século XII, vejo-a já a afastar-se. E a distãncia aumenta ainda quando me arrisco a relatar as minhas aventuras profissionais, dirigindo-me não só a seres que me conhecem, que me são queridos, mas a pessoas que nunca vi e das quais a maior parte lerá rapidamente estas páginas. Nem é fácil ordenar a sua própria memória. Como fazê-lo?".

Este post já vai longuíssimo, mas a questão suscitada por RB é enorme e persegue como se dum fantasma se tratasse todo e qualquer historiador e toda e qualquer historiografia.

Hei-de voltar a este tema, através doutras perspectivas, doutros olhares, de não historiadores, de historiadores portugueses (que me interessam sobremaneira...), mas agora quero rematar, terminar, com a ajuda de Le Goff, que, curiosamente, escapa às influências (as boas, as menos boas e as más...) do Maio de 1968 em França, porque estava, ironia da sua, dele, história,em Praga, nesse 1968!

Diz Jacques Le Goff, o que escreveu uma obra incontornável e de imenso impacte, Os Intelectuais na Idade Média, sobre esta problemática que nos assaltou, e bem, pela mão de RB: "Aquilo que procuro lembrar e lembrar-me é uma memória. Aquilo que me esforço por construir é uma história. Mas não está aí todo o trabalho do historiador? Uma das grandes aquisições da história, que se renova desde há cinquenta anos, foi ter alargado a sua documentação a tudo o que é memória. Ao documento tradicional, história morta, acrescentou o documento vivo." Mas, avisado oficiante, Le Goff alerta-nos, delicadamente, para o facto:"Desde a memória à história, o caminho é delicado, a transformação por vezes errónea e ilusória. Apenas posso garantir a minha boa fé e a utilização honesta do utensílio ainda imperfeito de que disponho (mas sei que boa fé e honestidade profissional são, em parte, ilusórias). Se esta referência não me esmagar sinto-me o Heródoto da minha própria história. Pudesse eu ser verdadeiramente um Heródoto!"

Ora aqui está,pois, modestíssimo contributo para a enorme questão que o Rui Bebiano suscitou.

Falemos,ainda, um pedaço de aspectos práticos que a questão suscita. e falemos de coisas bem recentes: a libertação de Ingrid Betancourt.

Ele há o fenómeno "acontecimental" ao modo definido por Paul Veyne: a sua libertação é um acontecimento, por si mesmo, e há-de ser um acontecimento histórico!

Mas, veja-se como, cada um de nós tratou este acontecimento (para não ser muito violenta a demanda...), coloque-se em linha os seguintes blogues, que sobre o acontecimento falaram: Corta Fitas, a Barbearia do Senhor Luís, Entre as Brumas da Memória, A Terceira Noite, Águia Lisa6, O Tempo das Cerejas e, eu próprio, aqui, no Aqueduto Livre.

Creio que, se pudessemos pedir a Pierre Nora e a Barnavi, para se debruçarem sobre estas fontes (os nossos blogues...) um e outro, uma e outra teoria, teria razão e demonstrariam, ambas, a sua eficiência epistemológica.Estou quase certo disso.


José Albergaria

NB - Falarei dos outros dois livros, que referi e que me parecem deveras adequados a esta problemática, em próximo poste.

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