sábado, junho 28, 2008

Maria Gabriela Llansol: Amar Um Cão.


Já me confessei, uma vez.A escrita de Maria Gabriela Llansol teve, para mim, a dimensão da revelação!

Cada vez que me intrometo na sua, dela, escrita, o sentimento persiste, avassalador, fulgoroso:revelação!

Deixo-vos, a todos, particularmente, aos meus amigos que gostam e/ou têm cães, um naco dum livro deveras singular, "Desenhos A Lápis Com Fala -Amar Um Cão-":


"_____houve uma breve hesitação da parte de quem transportava o recém-nascido________o meu cão Jade, há muito tempo; muito, e com grande intensidade, aconteceu durante esse tempo breve em que Jade foi deixado suspenso sobre um medronheiro, sem mãe visível, num berço nem celeste,
nem terrestre. No lugar que toda a planta acolhe, e que o entregara ao medronheiro,
sentia sobre si uma incidência animal alada,
que nem era verdadeiramente pássaro,
nem verdadeiramente quadrúpede.

Era um fio de voz soando à altura do corpo musical que compunha a mata, um choro que coincidia com a convulsão das primeiras gotas de chuva; um sentimento ténue envolvia a cabeça emergindo do verde, e as pequeninas patas, saídas de um pano de baptista, não comoviam
a planta lenhosa,
já habituada a palpitações e folhas.
mas o ritmo novo que, pouco a pouco, não se identifi-
cava com a chuva, e tornava vermelho de tempo activo a
atmosfera, fez erguer o medronheiro sobre si mesmo
«que ser tão frágil mais alto que eu».

Se o ar não tivesse uma densidade leve, teria quebrado
Jade. Jade, que acabara de nascer sobre as bagas purpúreas dos medronhos,
e o ruído dos ramos partidos, já pensava. Um pensa-
mento de leite subia nos sítios pedregosos, fora do local da casa, e da cerca com cerros e penhascos. Ele trazia
nos olhos um instrumento azul para medir o diâmetro do sol, e dos astros; lia-se neles uma linguagem que só
mais tarde, muito mais tarde, encontraria equivalente
na boca:
«o meu pai não existe fora da descrição do Sol; cami-
nho através da murta, do aderno, da aroeira, e avistei
esta serra em que memória vê primeiro o porto de nas-
cer;mal nasci, situei-me, em vida interior, em face do
mar; ergo para a minha dona os meus olhos frágeis,
opondo-me a uma adversária que, de certeza, me ama:
faço-lhe pedidos
luta comigo;
dá-me a sensação de ter saído vencido, mas com rebeldia.»"

Não fiqueis perplexos com o arrimo, arrumo, gráfico deste desconcertante naco de prosa Llansoliana. Ela é muito, mesmo muito, gráfica, quase pictórica.

Os espaços em branco que ela ocupa, ou liberta, fazem parte intrinseca do seu pulsar narrativo, da sua prosódia e aliteração. É mesmo asssim. Tal e qual.


Zé Albergaria

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